O episódio foi gravado em 08 de julho de 2020. Participaram do episódio as professoras Luciene Pessotti,
Liziane Jorge, Flávia Botechia; e as alunas Jessica Costa e Paula Azevedo.
Neste podcast discutimos a espacialização da contaminação e dos óbitos em decorrência da COVID-19 no município de Vitória e estabelecemos correlações entre a doença e o território. Os dados apresentados são provenientes de uma pesquisa científica desenvolvida pelas professoras Liziane Jorge e Luciene Pessotti, que manipula as informações presentes nos microdados disponíveis na base oficial do Painel COVID-19, criado pelo governo do estado do Espírito Santo no início da pandemia, em conformidade com a lei da transparência dos dados públicos de modo a enfrentar essa doença trágica e nortear políticas públicas específicas.
As reflexões enumeradas aqui são decorrentes da análise dos dados estatísticos da população contaminada e da transposição espacial destes até o mês de junho de 2020 para mapas georreferenciados, tendo como diretriz o agrupamento dos casos e óbitos por bairros e o cruzamento com a respectiva renda familiar e raça dos habitantes do município de Vitória.
O episódio propõe uma reflexão sobre a relação entre as desigualdades socioeconômicas presentes no município de Vitória, iniciados a partir da gênese da ocupação informal iniciada ainda na década de oitenta, sobre as áreas de manguezal, morros e demais áreas de extrema fragilidade ambiental, e as desigualdades intraurbanas que se refletem em maiores índices de comorbidades e letalidade da Covid-10 e, consequentemente, traz à tona as características que favorecem a disseminação da contaminação à luz das condições físico-espaciais presentes no território informal: inadequação habitacional, adensamento excessivo, precariedade urbana, ausência de saneamento básico. Destacamos que a capital, conhecida pela exuberância dos seus atributos naturais, pela qualidade de vida e pelo elevado Índice de Desenvolvimento Humano, de 0,845, dispõe de aproximadamente trinta e cinco mil domicílios situados em aglomerados subnormais (IBGE, 2020), o que equivale a 33,16% do total de unidades habitacionais de Vitória e, portanto, acumula as contradições do desenvolvimento urbano assimétrico e desigual.
Trazemos à tona a triste realidade já descortinada no mês de abril e indagamos: Como explicar que 67% dos óbitos pela Covid-19, do município de Vitória são de moradores residentes em bairros cuja renda familiar mensal é de até 3 salários mínimos? Como explicar que as comorbidades da população de baixa renda compreendem praticamente o dobro da taxa em relação aos moradores dos bairros de renda média e alta? A taxa de obesidade chega a ser três vezes maior nos contaminados residentes em bairros de renda baixa. Essa é uma triste realidade presente em muitas cidades brasileiras e reflete uma lógica neoliberal perversa que acomete a cidadania e os direitos humanos básicos.
Destacamos a relevância do uso das geotecnologias para o monitoramento e o acompanhamento da pandemia com a transposição de dados alfanuméricos e espaciais, permitindo a laboração de mapas temáticos de fácil compreensão por toda a sociedade. Sob a perspectiva da saúde urbana, é emblemático o mapeamento sistemático desenvolvido pelo médico Jonh Snow para a cidade de Londres, com o rastreamento dos focos de contaminação hídrica das fontes que deram origem ao surto de cólera de 1854. John Snow inaugurou um método de investigação epidemiológica baseado na observação, na quantificação do surto e na identificação de pontos de contaminação.
O episódio aponta dois livros icônicos para a compreensão da crise sanitária e do processo de exclusão, desigualdade e segregação socioespacial que se soma à realidade sociorracial do país: i. O Cortiço, romance de Aluísio Azevedo, de 1890, que relata a luta de classes, a exploração do trabalhador e o cotidiano dos cortiços cariocas; ii. Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, diário de uma catadora residente na favela do Canindé, localizada em São Paulo, escrito entre 1955 e 1960. O título do livro refere-se à atividade de despejo dos pobres da cidade, cujo cotidiano era ameaçado pelas inúmeras doenças presentes na favela, pela fome, e pelo sofrimento de uma mãe negra, pobre e migrante em sua luta pela sobrevivência e pela moradia.
Por fim, apontamos algumas ações notáveis de enfrentamento à precariedade habitacional dignas de divulgação neste contexto pandêmico como o programa Saúde Habitacional, desenvolvido em Vitória pelo Ateliê de Ideias, Fórum Bem Maior e a Organização Não Governamental (ONG) Associação Onze 8, que atua em territórios invisibilizados pelo poder público com ações de reforma e melhoria habitacional que repercutem positivamente na salubridade e na qualidade de vida dos moradores.
A epidemia do coronavírus demonstrou que, em Vitória, a desigualdade social elimina a vida dos corpos dos mais vulneráveis, seja em relação à doença, seja em relação à sobrevivência na pandemia. A má distribuição de renda imprime as suas consequências no espaço da cidade. Tais fatos apontam a necessidade de fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), que atende 190 milhões de pessoas no país, como direito humano e política pública fundamental para o enfrentamento não apenas da pandemia de coronavírus, mas de todas as circunstancias que produzem doenças e agravos à saúde da sociedade.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. São Paulo: Klick Editora, 1997.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Aglomerados Subnormais 2019: Classificação preliminar e informações de saúde para o enfrentamento à COVID-19 Notas Técnicas. Rio de janeiro: 2020. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101717_notas_tecnicas.pdf. Acesso em jan. 2021.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. Diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
FIGURA 01 – Percentual das comorbidades da população contaminada por faixas de renda em Vitória, ES (junho de 2020).
Fonte: Elaboração Liziane Jorge; Dados Painel COVID-19/ES.
FIGURA 02 – Infográfico dos óbitos em decorrência da Covid-19, em Vitória, ES (junho de 2020).
Fonte: Elaboração Liziane Jorge; Dados Painel COVID-19/ES.
Para ouvir o episódio acesso aqui o link do Spotify.
AUTORA DO TEXTO: PROFA. DRA. LIZIANE JORGE
BIO/ MINI CURRÍCULO DO AUTOR
Arquiteta-urbanista formada pela UFES, mestre em arquitetura pela UFMG, doutora em arquitetura pela FAUUSP, com investigação do tema habitação contemporânea e modos de vida. Profissionalmente tem experiência no desenvolvimento de projetos urbanos e trabalhos no âmbito do planejamento. Atua como professora de ensino superior desde 2004 em Instituições no Espírito Santo; foi professora por quase 4 anos na Universidade Federal de Pelotas, desenvolvendo pesquisas e extensão em comunidades vulneráveis; desde 2019 é professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFES. Atualmente desenvolve pesquisas sobre espaços públicos, mobilidade urbana, segurança pública, qualidade na habitação e saúde urbana.
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