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A DISSEMINAÇÃO DA GRIPE ESPANHOLA NOS GRANDES CENTROS URBANOS DO BRASIL: o caso de Salvador


Vista parcial do Comércio e porto de Salvador em 1917

Fonte: Café História



A gripe espanhola, como ficou conhecida uma epidemia de influenza, surgiu entre agosto e dezembro de 1918 durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e dizimou milhares de pessoas no mundo. Segundo Goulart (2005), a gripe disseminou-se pelo mundo em oito meses, e causou a morte entre cinquenta e cem milhões de pessoas.

A epidemia durou cerca de dois anos, com aproximadamente três ondas de intensidade e temporalidades distintas. A primeira onda, mais branda, durou menos tempo, ocorreu entre os meses de março e julho de 1918. A segunda, considerada a mais virulenta, ocasionou o maior número de mortes, e teve início em agosto e foi até janeiro de 1919. A última onda, durou de fevereiro de 1919 e, em alguns lugares, foi até 1920 (KIND E CORDEIRA, 2020).

Kind e Cordeira (2020) afirmam que há suspeitas que os primeiros casos ocorreram no estado do Kansas, Estados Unidos. Posteriormente, se disseminaram pela Europa por soldados estadunidenses. Em poucos meses, a doença alcançou várias partes do mundo, atingindo além da América, a África, Ásia, Oceania e Europa.

Segundo Lamarão e Urbinati (2016) a gripe recebeu diferentes denominações, entre as quais, a dansarina, gripe pneumônica, peste pneumônica ou simplesmente pneumônica.

A denominação “gripe espanhola”, segundo os autores, deu-se em virtude de muitas informações terem sido transmitidas pelos jornais da Espanha, que se manteve neutra durante a guerra.

Além das denominações citadas a gripe recebeu ainda as alcunhas de “terrível mal”, “ciclone maldito”, “flagelo”, “epidemia nefasta” “hecatombe” e “moléstia” (KIND E CORDEIRA, 2020).

Segundo Souza (2005), o Brasil no início da propagação da doença acompanhava à distância, pelos periódicos, as notícias da Europa. Foi na primeira quinzena de 1918 que brasileiros que “[...] participavam das operações de guerra, integrantes de missões médico-militares, após atracarem em Freetown, em Serra Leoa, e em Dacar, no Senegal, foram acometidos pela gripe que assolava esses portos africanos” (SOUZA, 2005, p.1).

A influenza chegou ao Brasil em 14 de setembro a bordo do paquete inglês Demerara, que havia tocado os portos de Recife, Salvador e Rio de Janeiro (SOUZA, 2005). A partir de então a gripe atinge várias cidades nordestinas. No outro mês, em outubro, a doença já era presente em quase todas as grandes cidades do país, inclusive Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo Lamarão e Urbinati (2016, p.1), em novembro a influenza “[...] chegava à Amazônia. Sua expansão provocou um esvaziamento dos centros urbanos, causado pelo medo de contágio da doença. Desconhecendo medidas terapêuticas para evitar o contágio, as autoridades pediam à população que evitasse as aglomerações”.

Periódicos da imprensa do Rio de Janeiro, capital da República, e de Salvador, antiga capital, ou seja, dois importantes centros urbanos do período, ignoravam ou tratavam com descaso, por vezes, em “[...] tom pilhérico, até mesmo em tom de pseudocientificidade, ilustrando um estranho sentimento de imunidade face à doença”, como se observou nos jornais cariocas (GOULART, 2005, p.1).

O descaso com a doença não impediu que ela avançasse pelo país. Uma matéria publicada no jornal A Tarde, em 24 de setembro de 1918, na primeira página, informava que aproximadamente setecentas pessoas haviam contraído a doença em Salvador (SOUZA, 2005).

No Brasil, durante a pandemia da gripe espanhola, registraram-se mais de 35 mil mortes. Segundo Lamarão e Urbinati (2016) no Rio de Janeiro, maior núcleo urbano do país, houve o maior número de óbitos. Em apenas dois meses faleceram cerca de 12.700 pessoas, correspondendo a aproximadamente 1/3 do total registrado no país. Estes números referem-se a população de quase um milhão de habitantes que moravam na cidade.

A criticidade da epidemia atinge seu ponto máximo no Rio de Janeiro quando a Diretoria Geral de Saúde Pública declarou que era impossível a gripe ser controlada: “a cidade estava parada. Colégios, quartéis e fábricas interromperam suas atividades. Havia falta de alimentos, de remédios, de leitos e até de caixões” (LAMARÃO; URBINATI, 2016, p.3).

Na cidade de São Paulo, registrou-se de outubro a dezembro 5.328 óbitos, em uma população estimada em 470 mil habitantes.

Visando fugir da epidemia muitas pessoas refugiaram-se em áreas afastadas. Lamarão e Urbinati (2016) informam alguns dados: em Recife, com população estimada em 218 mil habitantes, morreram 1.250; em Porto Alegre, com população de cerca de 140 mil habitantes, teve 1.316 óbitos; em Salvador, população estimada de 320 mil pessoas, cerca de 130 mil contraíram a gripe e 386 morreram.

No que tange a espacialização da doença em Salvador, Souza (2005) afirma, que nas primeiras décadas do século XX, as camadas mais pobres da sociedade baiana não tinham fácil acesso aos serviços médicos, que eram muito caros para aqueles que não podiam garantir as mínimas condições materiais de existência. O Serviço de Assistência Pública da Bahia, inaugurado em 1916, no Governo Seabra, não oferecia assistência ambulatorial. Após um mês de epidemia a Diretoria Geral de Saúde Pública implementou medidas de prevenção e combate à moléstia: foram ordenadas as lavagens das ruas e das praças; a desinfecção dos mercados públicos, dos ascensores e das estações e a lavagem dos bondes, principalmente dos mortuários.

Para acolher os indigentes atacados pela moléstia, maior número de vitimas, instalou-se uma enfermaria especial no Hospital de Isolamento de MontSerrat. Visando, também, o maior controle da disseminação e tratamento da doença Salvador foi dividida em seis zonas. A medida visava otimizar a inspeção e a assistência médica. Outras medidas foram adotadas como a contratação de médicos comissionados para o tratamento dos indigentes atacados de gripe na capital e no interior e, o cadastramento de farmácias para atender os 'espanholados' (SOUZA, 2005).

O perfil dos doentes pode ser analisado pelos dados Serviço de Estatística Demografo-Sanitária. O serviço especial de assistência médica e farmacêutica aos indigentes atacados de gripe atendeu 216 pessoas no período relativo a 27 de setembro a 31 de outubro. Tratava-se de enfermos sem recursos financeiros, que lançavam mão do serviço público e gratuito. Outro dado importante refere-se ao contágio das pessoas em ambiente laboral. Entre 25 a 26 de outubro de 1918, a Inspetoria de Saúde visitou 34 estabelecimentos, entre indústrias e fábricas, as companhias de transportes urbanos, gás e eletricidade, trapiches, docas etc. Os registros do Serviço de Estatística Demografo-Sanitária informam que em um espectro de 34 estabelecimentos diversos foram inspecionados 5.812 trabalhadores, dos quais 52,9% contraíram a moléstia (SOUZA, 2005).

Entretanto, o serviço da Inspetoria de Saúde não alcançava os populosos distritos fabris. Os moradores concentrados em becos, vilas e avenidas, não foram beneficiados pela a ação sanitária dos inspetores e desta forma muitas pessoas morreram sem que o serviço público tomasse conhecimento ou mesmo lhes prestasse algum tipo de assistência. Muitos anônimos que viviam na mais absoluta miséria morreram ao relento e suas mortes provavelmente não foram computados pela estatística oficial (SOUZA, 2005).

Neste grave momento onde a carestia imperava, e a pobreza recrudescia, muitas pessoas negavam a gravidade da doença, ou ignoravam-na, e em virtude da falta de recursos optavam por soluções caseiras. Sendo assim, provavelmente muitas vitimas da doença não obtinham recursos para custear um médico, tampouco para aviarem suas receitas em farmácias (SOUZA, 2005).

Em meio este cenário, onde nem sempre a Inspetoria de Saúde conseguia levar a cabo os levantamento, muitas pessoas “[...] embrutecidas pela miséria, não recorriam nem recebiam nenhum tipo de assistência, morrendo à míngua” (SOUZA, 2005, p.3) e não entravam nas estatísticas. Ainda assim, o Serviço de Estatística Demografo-Sanitária registrou 216 óbitos por influenza entre 27 de setembro e 31 de outubro de 1918. A maior parte das mortes, registrados pelo Serviço de Verificação de Óbitos, ocorreu no distrito de Santo Antônio Além do Carmo, área na ocasião ocupada pelos segmentos mais empobrecidos da população (SOUZA, 2005).

Outros distritos também foram atingidos de forma significativa, a saber, Brotas, onde morava parte da população fabril; Nazaré, que concentrou o terceiro maior número de vítimas, ficava próxima ao centro administrativo e comercial da cidade, e abrigava as pessoas que necessitavam estar próximas ao local de trabalho; na Sé, Pilar, São Pedro, Conceição da Praia e rua do Passo, as famílias se amontoavam em cortiços; na Penha e nos Mares, estavam localizadas as principais indústrias de Salvador, concentrando os seus operários; na Vitória, os pobres concentravam-se nos atuais bairros do Garcia, Fazenda Garcia, Federação e imediações do Porto da Barra (SOUZA, 2005).

Segundo a estatística oficial, até 30 de novembro de 1918, a influenza maligna teria infectado cerca de 130 mil pessoas entre os 320 mil habitantes de Salvador. Ou seja, num período de 65 dias, 40,6% da população haviam contraído a doença. Considerando-se o mesmo intervalo de tempo, estimava-se que 338 pessoas tinham sido vitimadas pela gripe, numa média diária de 5,2 óbitos provocados por esta moléstia.

A maior parte das vítimas da gripe espanhola em Salvador eram os trabalhadores os indigentes, isto porque, a qualidade de vida de grande parte da população baiana no ano de 1918 estava comprometida com as reformas urbanas, que desalojou muitas pessoas que passaram a se aglomerar em lugares insalubres. O custo de vida elevado gerou fome. Este estado de coisas impediu que os organismos já debilitados por outras doenças crônicas ou carenciais não oferecessem resistência à doença (SOUZA, 2005).

Lamarão e Urbinati (2016), também afirmam que a gripe espanhola atingiu toda a pirâmide social. No entanto, a maioria das vítimas provinha das camadas populares e daqueles grupos chamados pelas autoridades de indigentes.

O fato é que no Brasil, notadamente nos grandes centros urbanos, as providências que deveriam ser tomadas logo ao sinal dos primeiros casos da gripe espanhola foram sendo adiadas, o que contribuiu, para o atraso no enfrentamento a doença e para o grande número de óbitos.


REFERÊNCIAS


GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 12, n. 1, p. 101-142, Apr. 2005 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Mar. 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-59702005000100006.

KIND, Luciana; CORDEIRO, Rosineide. NARRATIVAS SOBRE A MORTE: A GRIPE ESPANHOLA E A COVID-19 NO BRASIL. Psicol. Soc., Belo Horizonte , v. 32, e020004, 2020 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822020000100403&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Mar. 2021. Epub Sep 04, 2020. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32240740.

SOUZA, Christiane Maria Cruz de. A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro , v. 12, n. 1, p. 71-99, Apr. 2005 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100005&lng=en&nrm=iso>. access on 19 Mar. 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-59702005000100005.

SOUZA, Christiane Maria Cruz de Souza. Quando o flagelo bate à porta: a epidemia de “gripe espanhola” na Bahia (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-gripe-espanhola-na-bahia/. Publicado em 13 abr. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: 15 de mar. 2021.

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